quinta-feira, 5 de outubro de 2006

ERA UMA VEZ UM CHINÊS



Era uma vez um chinês que, indiferente ao esplendor da dinastia Ming ou dos clamores da Revolução Cultural, começou a pensar em mudar para o outro lado do mundo, mais propriamente para poente.
Acontece, porém, que tinha esposa e filhos – coisa sempre de ponderar quando se pensa em tomar uma decisão tão arriscada como esta.
Por isso mesmo resolveu aconselhar-se com outros cidadãos cujos familiares haviam corrido a mesma aventura e iam enviando boas notícias da sua nova vida. Num momento de maior lucidez contactou mesmo alguns familiares que viviam em Macau e, naturalmente, tinham informações mais fidedignas sobre o país para onde pensava, em princípio emigrar.
Feitas as contas – das quais faziam uma boa dose de confiança nas informações recebidas e no apoio dos seus compatriotas – acabou por deixar a terra do Sol Nascente e rumar em direcção ao Sol Poente.
É claro que não vamos aqui pormenorizar as dificuldades deste desconhecido e aventureiro chinês. Para o caso que interessa bastará dizer que, depois de andar de um lado para o outro, de Herodes para Pilatos ou seja de terra em terra, lá acabou por encontrar o sítio ideal para se estabelecer. E, de tantas por onde andou, foi aqui mesmo, na praça central de Vendas Novas, a da República, que encontrou disponível o sítio exacto para montar a sua “loja dos trezentos”, templo de bugigangas e baratezas, que os locais apreciam muito.
O sítio era de tal forma ideal que até tinha sido aí que funcionara, durante anos, a “histórica” Pastelaria Império, recanto de encontros e desencontros, de saudades e de recordações. De tal forma que ainda hoje ali se juntam na frente do actual centro bugigangal, quais sem abrigo, os velhos frequentadores do outro templo. Isto para já não ter que destacar que a dita pastelaria era a produtora do único “doce local” a que, inspirados na Escola Prática de Artilharia, situada mesmo defronte, deram o nome de “granadas”.
Indiferentes a estas “glórias” os donos da mítica Pastelaria Império resolveram vender este último reduto da convivência e da identidade pasteleira vendasnovense ao nosso amigo chinês. Xin Fu, assim se chama ele, estava feliz. Comprou o edifício todo, desde a frente até ao forno, comprou mercadorias, gastou todos os seus haveres no projecto, sonhava prosperar.
Eis senão quando a Câmara mandou fechar tudo. Que não, que tinha que se preservar a história e a vivência da praça e a identidade das “granadas” – que alguns passantes teimavam em procurar na esperança de levarem uma especialidade da terra – que mais isto, que mais aquilo.
É claro que Fu ficou fulo! Vendo-se na desgraça, implorou que ao menos o deixassem montar uma banca pública, em plena praça, para escoar a sua mercadoria e alimentar a família.
A Câmara autorizou (provisoriamente, é claro). Mas logo outros comerciantes instalados com artigos do mesmo ramo, e mais ou menos na Praça, invocam (e com razão) o lado inestético da coisa, o ambiente feirante que denegria a cidade – só para não dizerem que temiam a concorrência. O protesto atingiu tais dimensões que até mesmo aqueles que comerciavam as mesmas bugigangas e que, para além disso, ainda por cima abusam da ocupação do passeio – que é coisa pública e como tal é de todos – com a exposição exterior das ditas, foram os mais recalcitrantes.
Estava eu nisto, a ver como tudo terminava, quando acordei. Afinal, tudo não tinha passado de um sonho. As lojas dos trezentos continuam a substituir os velhos cafés e as antigas tertúlias que ali pontificavam. A Câmara não mandou fechar coisa nenhuma e o passeio continua atafulhado. Os “sem abrigo” continuam à sombra da laranjeira em frente do templo bugigangal.

Maio de 2004
Leonel da Cunha

Nota – Esta crónica, da autoria do Sr. Leonel Cunha, foi publicada na Gazeta de Vendas Novas em Maio de 2004. Pela sua actualidade, (dada a proliferação de lojas chinesas na cidade e no país) e ainda pelo seu valor literário, pedi permissão para aqui a transcrever, e agradecer ao autor.

3 comentários:

Anónimo disse...

Por esta excelente crónica, como mais tarde deu para perceber ,foi o seu autor "acusado" do crime de izer mal da CMVN o que , como se sabe, é blasfémia e passível de punição como crime de lesa-Democracia.

João Fialho disse...

Eis um texto bem inspirado, de muito fácil e agradável leitura. Para quem tem jeito, como o autor desta história do chinês, escrever até parece ser fácil. Como não apreciar delícias como estas?:

"É claro que Fu ficou fulo!"

"... o sítio exacto para montar a sua “loja dos trezentos”, templo de bugigangas e baratezas, que os locais apreciam muito."

"... a “histórica” Pastelaria Império, recanto de encontros e desencontros, de saudades e de recordações."

".. ainda hoje ali se juntam na frente do actual centro bugigangal, quais sem abrigo, os velhos frequentadores do outro templo"

"Os “sem abrigo” continuam à sombra da laranjeira em frente do templo bugigangal."

Uma delícia. Mesmo não tendo passado de um sonho ...

Anónimo disse...

Tive a oportunidade de felicitar o amigo Leonel aquando da saida do artigo na Gazeta.
E a este propósito falamos depois sobre a Pastelaria Império que a mim tanto me toca.
Falamos também sobre a não intervenção da CMVN no sentido de impedir que os valores emblemáticos e culturais da nossa terra desapareçam.
As minhas saudações.
JS