Há pessoas que não nos cansamos de ouvir. O que rapidamente se transforma num prazer. Cativam-nos pela simplicidade e pela sua expressiva amabilidade. Pela paixão que transmitem a cada palavra, ouvida com a maior atenção. Cada frase é uma lição, apetece-nos ficar ali, simplesmente a ouvir, a beber a história em directo, a ver passar à nossa frente cada acontecimento, relatado como se estivesse ali naquele preciso momento, a acontecer perante os nossos olhos. Há pessoas que apetece ouvir, que vale a pena escutar, que agradecemos poder conhecer. O Dr. Ennes Ferreira é um desses casos.
E quando o tema é a História, então vale mesmo a pena ouvir este amigo de Vendas Novas. Que nos fala da sua terra com enorme paixão e pela qual sente uma gratidão imensa, tal como nos confidenciou. Foi com enorme prazer que na passada sexta-feira, dia 18 de Agosto, dois colaboradores do “Atribulações Locais” se deslocaram à Santa Casa de Misericórdia de Vendas Novas para, durante cerca de uma hora, regressarem ao passado e reviverem um pouco a História de Vendas Novas, contada na primeira pessoa por quem a viveu de perto e por quem teve, reconhecidamente, um papel fundamental na promoção e desenvolvimento da sua terra.
O DR. ENNES FERREIRA, SOBRE ELE PRÓPRIO
Actualmente com 88 anos de idade, considera-se um Vendasnovense, pois apesar de ter nascido em Lisboa, veio para Vendas Novas com apenas 3 anos de idade. O seu pai era Médico Militar e com o fim da Grande Guerra (1914-1918) foi mobilizado para a Escola Prática de Artilharia, passando a adoptar esta terra como sua. Aqui nasceram mais 3 irmãos num total de 5, sendo o Dr. Ennes Ferreira o mais velho: “
Toda a família criou um sentimento de gratidão para com Vendas Novas” – diz-nos.
Nos primeiros anos frequentou a escola da D.ª Maria Magalhães, uma senhora que a titulo particular ensinava os miúdos da época e os preparava para a instrução primária, nomeadamente, a ler e escrever. O Dr. Ennes Ferreira nutre por esta senhora uma enorme consideração e estima que, segundo ele, foi uma grande senhora.

Aos 7 anos, começou a instrução primária na Escola Régia,
"também conhecida por Escola dos Reis, mas isso era uma deturpação do nome". Como o próprio nos explicou, designava-se Escola Régia porque vinha do tempo da monarquia, motivo pelo qual também era conhecida por “Escola dos Reis”. Trata-se do edifício onde ainda hoje funciona uma Escola Primária, junto à Casa do Povo. Mais tarde, frequentou o Colégio Militar em Lisboa, onde terminou o liceu.
Pese embora a sua avançada idade, é notória a boa capacidade de argumentação, tendo demonstrando uma muito boa desenvoltura ao nível da comunicação, o que se traduziu numa fácil empatia durante toda a nossa conversa. Falou-nos, por diversas vezes, da família e dos princípios da amizade “
Não faças aos outros o que não gostavas que te fizessem a ti” – diz-nos que é a sua base para o bom relacionamento com as pessoas. “
Durante toda a vida tentei fazer amigos com as pessoas que contactei, tanto em Vendas Novas como em Montemor-o-Novo, onde tenho grandes amigos".“
Na minha vida, trabalhei, trabalhei, trabalhei … mas isso não me cansava. Canso-me mais agora que estou sozinho, pois nunca fui uma pessoa solitária. Tenho vários sobrinhos e agora nestes 15 dias de férias que não os tenho visto, faz-me diferença! Tenho uma família grande e gosto imenso de toda a minha família. De todos eles. Todos.”
SOBRE A CRIAÇÃO DO CONCELHO DE VENDAS NOVAS
“
Tenho uma enorme gratidão para com Vendas Novas, pois deu-me a possibilidade de promover uma terra”.

Vendas Novas era na altura uma freguesia de Montemor-o-Novo, “
a freguesia mais miserável e menos desenvolvida do concelho” – conta-nos. Várias tentativas de constituir o concelho esbarravam nas influências que algumas entidades montemorenses tinham junto do governo central.
“
Os anos foram passando e as tentativas de formar o concelho de Vendas Novas foram-se sucedendo, até que as pessoas que andavam a tratar do assunto falaram comigo. Na altura, eu trabalhava na Presidência do Conselho de Ministros, mais tarde exerci o cargo de Inspector-Geral das Actividades Económicas, e tinha por isso acesso directo ao Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar. Decidi que tinha a obrigação de ajudar, pois tratava-se da minha terra”.
Tudo isto nos é contado com uma determinação e clareza como se estivesse a viver o momento, a reviver aqueles instantes. Nessa fase, Montemor-o-Novo toma umas atitudes que o aborreceram. Entre elas “
um artigo que fizeram a desancar-me”. Decidiu então: “
Quem vai tratar disto sou eu, falei com o Ministro do Interior e apenas três meses mais tarde saiu o Decreto-Lei a reconhecer Vendas Novas como Concelho” – confidencia-nos com uma emoção que não engana sobre a sua paixão por esta terra. Estávamos a 7 de Setembro de 1962. Após a criação do concelho, o Dr. Ennes Ferreira foi o primeiro Presidente da Câmara Municipal de Vendas Novas, cargo que exerceu durante 2 mandatos consecutivos de 4 anos.
Por esse tempo, Vendas Novas deixa de ser a freguesia mais pobre e com maiores dificuldades do concelho de Montemor, passando a ser “
o melhor concelho do Distrito de Évora”, diz-nos com evidente orgulho na sua contribuição, “
ultrapassando mesmo o concelho a que antes pertencera”. Para isso, e mais uma vez, o papel do Dr. Ennes Ferreira foi preponderante. É ele que cria condições e traz para Vendas Novas uma série de indústrias, designadamente de cortiças e de vestuário, possibilitando a criação de muitos novos postos de trabalho. O novo concelho começou então a atrair pessoas das aldeias vizinhas e de outras terras, que aqui encontravam melhores condições. Como o próprio nos disse: “
Vendas Novas não tinha população suficiente para os postos de trabalho entretanto criados, então começaram a chegar pessoas das aldeias vizinhas e de outros sítios para aqui se fixarem. Deu-se um crescimento significativo e a população quase duplicou”.
A ACTUALIDADE, COMO A VÊ O DR. ENNES FERREIRA
Já perto do fim deste breve encontro, o nosso amável anfitrião falou-nos da actualidade e de como vê Vendas Novas nos dias de hoje. “
Vendas Novas em particular não me preocupa assim tanto como o próprio país. Vendas Novas está a seguir o seu caminho como todas as terras, o que me preocupa é o país e a actual falta de rumo. Não interessa se somos deste ou daquele partido, não é o povo que tem culpa. Não temos é tido sorte com quem tem comandado o país”. Ainda sobre este tema, defende que “
temos de fazer sempre o melhor pelo nosso país”.
Já sobre questões de política internacional, frisou, sobre uma das questões que fazem parte das suas preocupações: “
esta situação no Líbano preocupa-me, estamos a metermo-nos em guerras alheias, não temos autoridade para isso”. A propósito da actual geração dos mais novos, tem a opinião que “
os mais novos não me conhecem, pois vivem a história do seu próprio tempo, o que é normal, foi assim também no meu tempo. Os mais antigos, sim, porque viram os benefícios da criação do concelho.”
Com o aproximar do fim desta breve mas elucidativa e entusiasmante conversa, quase nem nos apercebemos do tempo passar. Ao longo de pouco mais de uma hora, tivemos o prazer de assistir na primeira pessoa, à descrição apaixonada de uma importante parcela da história de Vendas Novas.Sempre com bom poder comunicativo, o Dr. Ennes Ferreira falou-nos da sua vida, do passado e do presente de Vendas Novas. Sobre o país, manifesta-se preocupado com a actual situação, essencialmente por aquilo que referiu como sendo “uma falta de rumo”. Notámos, em toda a conversa, uma enorme dedicação e amor à sua família, a Vendas Novas e aos amigos. Aos seus muitos amigos. Falou-nos igualmente com preocupação do actual momento na política internacional, num discurso ponderado e bem fundamentado. Evidenciou por diversas vezes o amor que sente por Vendas Novas e o sentimento de gratidão, que ele e a sua família têm por esta terra. A sua terra.Como dissemos, foi um enorme prazer partilhar estes momentos com o Dr. Ennes Ferreira. Estamos-lhe, também por isso, sinceramente agradecidos. Bem haja, caro amigo.Marco Alves e João Fialho